terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Tendência/Alinhamento: uma resenha anacrônica de eras passadas – parte 1


Esse texto foi originalmente escrito para o site RPGnotícias em 22/03/2018 e está sendo republicado no meu blog pessoal para fins de arquivo devido a um problema com a hospedagem do site!

Existem poucos tópicos que geral uma discussão maior no sistema de D&D desde sua criação que Alignments/Tendências. Muitas destas discussões surgiram por culpa dos próprios autores de livros, com visões divergentes.

Muitas pessoas possuem diferentes ideias do que Alignments/Tendências são e, em geral, todas essas visões divergentes têm simultaneamente confirmação e falta de apoio ao longo dos livros e anos, com contradições às vezes surgindo dentro do mesmo livro.

Primeiro, vamos dar uma olhada na trajetória de Alignment/Tendências ao longo da história de D&D como um todo. Além do contexto dentro do jogo, ressaltarei alguns pontos importantes dignos de nota ao longo das edições, quando for necessário para uma compreensão maior ou melhor da ideia como um todo.

Nota: Ao longo desse texto eu vou tentar manter a ideia de Alignment ao invés do termo Tendência, exceto quando for muito repetitivo, porque Tendência é uma das traduções possíveis, mas não a única e nem a melhor.

O início: “Alignment Begins”

Lá nos idos de 1977, Gary Gygax e Dave Arneson criaram um sistema de conduta moral simplista para um jogo simplista.

Essa mecânica eram um código de comportamento, maneira de viver que guiava ações e pensamentos de personagens jogadores (PJ) e monstros: um único eixo moral absoluto com uma intersecção entre dois extremos, e se chamava de Alignment.

Existiam 3 Alignments (Lawful, Neutral e Chaotic) e os jogadores podiam escolher quaisquer deles sem obrigação de ter que dar satisfação aos outros jogadores da mesa – isso é frisado de forma explícita. Tem um adendo curioso sobre a maioria de personagens com Alignment Lawful provavelmente revelariam seus Alignment se perguntados, mas não é algo obrigatório.

Antes mesmo de uma descrição mais detalhada, o livro frisa que personagens Chaotic não são dignos de confiança, nem mesmo por outros personagens Chaotic; que os mesmos não funcionam bem num grupo com PJs, etc. Em outras palavras os três funcionam e existem mas um deles não funciona bem em grupos.

E no final, também ressalta que Alignments não são camisas de força, são guias. Mesmo que a personagem siga uma dessas correntes de pensamento, não quer dizer que ela será bem sucedido sempre em segui-la à risca 100% do tempo. Em seguida, ele dá uma breve descrição do que cada Alignment representa.

Lawful: É a crença de que tudo deve seguir uma ordem, e que obedecer as regras é a forma natural de viver. Criaturas com esse Alignment tentarão contar a verdade, obedecer leis justas, manter promessas e se importarão com o bem estar geral de tudo ao seu redor.

Se algum tipo de comprometimento precisar ser feito entre um indivíduo e o bem coletivo do grupo como um todo, um personagem Lawful provavelmente escolherá o bem do grupo, a menos que as circunstâncias ditem o oposto. O personagem procura sempre seguir a Lei*.  Em seguida, temos uma informação importante: Lawful também é geralmente visto como um comportamento “bondoso”.

Neutral: O personagem acredita que o mundo funciona num equilíbrio entre Lei* e Caos*, na importância que nenhuma das forças desequilibrem essa balança. O indivíduo é importante mas também o grupo: ambos lados devem trabalhar em harmonia.

Um personagem neutro tem interesse acima de qualquer convicção na própria sobrevivência e pode ou não juntar-se a grupos ou trabalhar em equipe, precisando as vezes de incentivos pra tal. Um Alignment Neutral pode ter seu comportamento visto como tanto “bondoso” quanto “maligno” dependendo do contexto ao seu redor, ou simplesmente alheio a essas noções.

Chaotic: O Caos* é diretamente o oposto a Lei*, crendo que o mundo funciona através da aleatoriedade e que a sorte governa a realidade. Regras foram feitas pra serem quebradas, desde que você consiga se safar com segurança. Não há obrigação em manter promessas e tanto a verdade quanto a mentira são ferramentas úteis para conseguir o que quer.

A individualidade é mais importante que o bem-estar do grupo. Egoísmo pode ser considerado algo normal por aqueles que possuem esse Alignment, e por isso esses personagens não são dignos de confiança como um todo. O comportamento de um personagem desse Alignment pode ser considerado “maligno”, apesar da informação extra de que o próprio jogador do personagem decide se Chaotic quer dizer uma pessoa egoísta e mesquinha ou simplesmente alguém de bem com a vida, que confia na sorte e não se prende a padrões.

Perceberam a adição de asteriscos em alguns termos específicos? Lei e Caos aqui não querem dizer “Lei” como em “seguir regras de uma autoridade soberana” e sim como “Preceitos ou normas morais e etc”. Em outras palavras, Lei não é no sentido de legislação e sim no sentido de “moralidade”.

A dinâmica de um grupo depende muito da bússola moral de seus integrantes.

Firme no meio desses dois extremos, a neutralidade seria ao mesmo tempo a “capacidade de abstenção”, “autarquia individual” e talvez a “anarquia”.

Igualmente, “Caos” não quer dizer “Desordem e bagunça sem propósito”, estando muito mais propensa a ideia de “Confusão geral dos elementos, antes da formação do mundo” misturada com “Acaso e ao sabor da sorte” e “Tudo aquilo que não segue regras impostas”.

Atenham-se a estes asteriscos que vão continuar sendo usados até o final do texto para diferenciar as definições normais de Lei e Caos dos termos usados dentro da lógica do sistema do jogo.

Temos exemplos de como personagens com diferentes Alignments agiriam na mesma situação (resumidamente, Lawful colocando os interesses do grupo na frente dos próprios, Neutral podem ou não colocarem e Chaotic irão sempre pensar em si mesmos).

E como regra estranha final temos as Alignment Languages (“Idiomas de Tendência”, numa tradução livre), onde um personagem tem como comunicar-se com alguém do mesmo Alignment, mas é incapaz de entender um idioma de um Alignment diferente, apesar de reconhecer que É uma comunicação de Alignment. Mudar de Alignment faz com que o personagem esqueça o idioma do anterior e aprenda o novo de maneira instantânea. É esquisito.

Apesar de exótico, esse conceito de “Língua de tendência” seria revisitado anos mais tarde em livros da terceira edição, na forma idiomas voltados pra um propósito capazes de descrever vividamente coisas sobre os conceitos defendidos pela tendência em questão, mas incapazes completamente de falar sobre aspectos que são opostos – quase um newspeak ético.

Como conclusão a primeira edição, fica a obviedade de que o eixo moral simplista engloba tanto personagens e npcs que estão nos extremos ou apenas tocam as vertentes mais brandas de ambos os comportamentos, com a neutralidade oscilando entre um padrão tanto de “normalidade” quanto de anarquia total. Uma loucura total.

Mas como já citado no ótimo artigo do Rich Burlew, o sistema de Alignment implodiu em detrimento de outros aspectos do sistema como por exemplo, códigos de conduta obrigatório de outras classes que se misturaram com as definições de Alignment por suas restrições.

É difícil de ver um jogador que não associe por certas classes como exemplos claros de certos Alignment, mesmo que o oposto não seja verdade.

Paladinos (sob o nome de Knight) – nessa edição sendo como uma possível subclasse de Fighting Men / Fighter, obrigatoriamente Lawful – por exemplo, são regidos por um código de conduta completamente arbitrário que proíbem ou obrigam a realização de diversas ações (por exemplo, seguir as ordens de uma ordem clerical Lawful a serviço do Bem**, obrigação de dar assistência / ajuda a qualquer criatura excluindo criaturas malignas) em adição ao Alignment Lawful.

O paladino segue um código de conduta extra além da moralidade ditada por seu Alignment, e essas obrigações não são reflexos do Alignment Lawful. A confusão que o não esclarecimento dessa informação causa é surreal e gera discussões até hoje.

O eixo dos Alignments aqui é restritivo mas aberto o suficiente para que os jogadores possam inserir nuances e diferentes interpretações dentro destes parâmetros, já que Lei* e Caos* já englobam em suas definições Bem e Mal.

Estava tudo bem. Meio tumultuado pelo acúmulo de diferentes possibilidades dentro de cada Alignment, mas funcional. Mas tudo mudou quando a nação do fogo atacou.

Segunda edição: “Crise nos (dos?) Infinitos Alignments”

O ano é 1978, Lake Geneva. Os Alignments, que eram apenas 3 num único eixo, tornaram-se nove com a edição de um novo eixo paralelo. O que era apenas Chaotic/Neutral/Lawful recebeu a adição de Good/Neutral/ Evil”. É o sistema de Alignment que os jogadores brasileiros estão mais acostumados, que foi trazido pra cá na tradução da segunda edição de AD&D, pela Editora Abril.
Parafraseando a moça do Avast que te assusta no meio da madrugada quando fala em voz alta: “suas definições de Alignment foram atualizadas.”

A adição do eixo Good-Evil (Bem-Mal) em adição ao Lawful-Chaotic (Lei-Caos) supostamente serviria pra melhorar as discrepâncias anteriores e melhor identificar personalidades divergentes que eram agrupadas no mesmo Alignment; no sistema anterior uma pessoa feliz com a vida que age dependendo da sorte e foge das regras divide o espaço de Alignment (em regras) com que o cara que queima orfanatos pra fazer torrada para o café da manhã.

Bem e Mal foram adicionados… mas sem mudar as definições explícitas sobre o que era Lei* e Caos*, temos uma confusão formada: 9 Alignments possíveis e nenhuma definição nova sobre Lei* e Caos* explícita (mas implícita e perceptível), subitamente Bem e Mal passam a fazer parte desse jogo – mesmo que Lei* englobasse a ideia comum desse Bem, e Caos* fizesse o mesmo pelo Mal definições anteriores (que agora não estão mais válidas, mas isso não é dito explicitamente).

Vamos a uma descrição por alto de cada um, e o que podemos inferir a partir destas mesmas, já que não estão mais separadas individualmente por Alignment pra perceber o tamanho do balaio causado por isso.

E formamos algumas noções clássicas, embora nem sempre sejam claras o que essas noções fossem

Chaotic Evil: Liberdade, aleatoriedade, individualismo e egoísmo. “Promove caos e o mal”, mas não explica o que isso quer dizer além de “quer controlar as coisas aos seus caprichos”.

Chaotic Neutral: Liberdade, aleatoriedade e desordem são as palavras imperativas. Se opõe ao bem e ao mal porque as “forças do Caos ficariam desamparadas com isso”, mesmo sem definir o que seriam.

Chaotic Good:  Liberdade, aleatoriedade, individualismo e valorização da vida alheia. Promove “espalhar a palavra dos Deuses Chaotic Good e espalhar estes valores pelo mundo”, mesmo que nenhum outro Alignment fale ou obrigue religiosidade como parte de suas atribuições ou definições.
Até aqui ficou claro que a definição de Chaotic perdeu a nuance de ser “tudo aquilo que não segue as regras impostas” e recebeu a carga de “anarquia” (que era do Neutral) e “desordem e bagunça sem propósitos”, que nem estava lá anteriormente. Também podemos perceber Evil e Good são resumidas pela sua postura diante do que pensam / fazem em relação aos outros.

Conferindo os Alignments Lawful, isso fica ainda mais claro.

Lawful Evil: Respeitam as leis e ordem restrita, mas desprezam a vida, beleza, verdade e liberdade. Querem forçar sua vontade no mundo através de disciplina.

Lawful Neutral: Vê regulamentos, leis e ordem como o mais importante, acima do conflito de Bem e Mal. Personagens desse Alignment veem a ordem e a lei como o mais importante e que Bem e Mal são irrelevantes além do seu propósito de trazer a ordem(!?).

Lawful Good: Respeita leis e ordens mas procura trazer o bem em comum através das mesmas. Certas liberdade individuais devem ser sacrificadas em prol de um bem maior mas a verdade, a lei e a beleza são os valores mais importantes. Cita também que “Os benefícios de uma sociedade assim são para ser compartilhados a todos”, mesmo que nenhum outro Alignment cite sociedade.

Com essas informações, Lawful também teve suas definições alteradas de forma silenciosa, mas perceptível. Lawful quer dizer “lei” no sentido de “regulações e legislação de um poder soberano” ao invés de apenas a “ordem natural”. Lawful perdeu o aspecto de “Bem maior” mas manteve o aspecto de “norma moral”, mesmo que isso seja contraditório. Também há uma discrepância de contar mentiras nos próprios Alignments Lawful, mas podemos inferir que isso seja influência do Evil.
Será que a influência do Evil é tão perceptível assim na neutralidade? Vamos conferir!

Neutral Evil: Um personagem desse Alignment vê Lei e Caos como desnecessário, porque o Mal é ao mesmo tempo finalidade, ferramenta e meio. Ambos podem ser utilizados mas são coisas descartáveis para trazer o máximo de mal ao mundo. Ooookay…

True Neutral (Neutral nos dois eixos): O famoso em cima do muro. Vê todos os outros Alignments – mas não a si mesmo – como facetas de algo maior. Todas as coisas devem permanecer em equilíbrio para manter o Status Quo, e nada pode / deve ser mudado permanentemente, apenas temporariamente. A Natureza irá prevalecer e manter as coisas da maneira que deveriam ser desde que o contexto ao redor não seja alterado por ações externas. Dessa forma, o True Neutral é um misto simultâneo de “tirar o corpo fora” e “extremista”.

Neutral Good: Esse Alignment diz que devem haver combinações de regulações e liberdades individuais para que atinjam as melhores condições de vidas possíveis para todas criaturas inteligentes do mundo. É o menos descritivo de todos Alignments, é o famoso “te vira aí pra ser bom”.

Mas se Neutral perdeu o aspecto de “anarquia” quando associado com outros Alignments, a “capacidade de abstenção” foi exacerbada de forma a aumentar o valor/força do Alignment companheiro.

Evil torna-se algo autodestrutivo e sem propósito quando exacerbado pela abstenção do Neutral, enquanto que o Good apenas mantém-se numa não-oposição e numa não-dicotomia de não interferência pelo “bem de todos”. Vale ressaltar que isso é também o começo de uma das coisas mais insatisfatórias de D&D como um todo, onde você pega o Mal, multiplica por -1 e tem como resultado da equação, o Bem. Falarei mais sobre isso no na próxima edição, na análise de 2 livros bem específicos…

True Neutral por si só merece comentários: é uma grande contradição que consegue ao mesmo tempo ser o único que manteve um aspecto da edição anterior através do elemento da “anarquiae ter esse mesmo elemento exacerbado pelas próprias adições dessa edição.

Sendo ativamente incentivada pela manutenção e oposição do poder de criaturas de outros eixos e Alignments, ao mesmo tempo que reduz-se a um fatalismo inegável torna-se uma escolha filosófica, True Neutral pode variar do “não tomarei partido” e não me meterei até “eu devo aniquilar todos extremos” sem nenhum tipo de compaixão. Esse segundo comportamento, alias, aparece em alguns mundos publicados como certos npcs chave de Greyhawk, onde personagens atacam forças do bem e mal igualmente em busca de um “equilíbrio” – se você achou estranho, não está sozinho, porque não faz sentido pra mim também.

Ao longo das descrições podemos ver uma série de informações que se contradizem: afinal, se tanto um Chaotic Evil tanto quanto um Lawful Evil querem ambos “impor sua vontade”, mesmo Chaotic e Lawful sendo opostos – e isso não é causado pela parcela Evil, já que Neutral Evil é o mal sem propósito, basicamente algo autodestrutivo – então qual a diferença prática entre ambos?

Há diversas descrições conflitantes, onde Lawful é seguir regras e suas palavras, mas ao mesmo tempo Lawful Evil desprezam a verdade; Chaotic Neutral é “se opor ao bem e mal” e instaurar o Caos, mesmo que Caos seja a anarquia (e por si, tocante do True Neutral).

Tem também a estranhíssima defesa da “verdade, lei e beleza” do Lawful Good, que eu não entendi até hoje, aproximadamente 22 anos de ter lido pela primeira vez.

E por enquanto, é só isso, das primeiras duas (e meia) edições de D&D. Mais tarde, só fica mais estranho. :v