Esse texto foi originalmente escrito para o site RPGnotícias em 22/03/2018 e está sendo republicado no meu blog pessoal para fins de arquivo devido a um problema com a hospedagem do site!
Existem
poucos tópicos que geral uma discussão maior no sistema de D&D desde sua
criação que Alignments/Tendências. Muitas destas discussões surgiram por culpa
dos próprios autores de livros, com visões divergentes.
Muitas
pessoas possuem diferentes ideias do que Alignments/Tendências são e, em geral,
todas essas visões divergentes têm simultaneamente confirmação e falta de apoio
ao longo dos livros e anos, com contradições às vezes surgindo dentro do mesmo
livro.
Primeiro,
vamos dar uma olhada na trajetória de Alignment/Tendências ao longo da história
de D&D como um todo. Além do contexto dentro do jogo, ressaltarei alguns
pontos importantes dignos de nota ao longo das edições, quando for necessário
para uma compreensão maior ou melhor da ideia como um todo.
Nota: Ao longo desse texto eu vou
tentar manter a ideia de Alignment ao invés do termo Tendência, exceto quando
for muito repetitivo, porque Tendência é uma das traduções possíveis, mas não a
única e nem a melhor.
O início: “Alignment Begins”
Lá nos
idos de 1977, Gary Gygax e Dave Arneson criaram um sistema de conduta moral
simplista para um jogo simplista.
Essa
mecânica eram um código de comportamento, maneira de viver que guiava ações e
pensamentos de personagens jogadores (PJ) e monstros: um único eixo moral
absoluto com uma intersecção entre dois extremos, e se chamava de Alignment.
Existiam
3 Alignments (Lawful, Neutral e Chaotic) e os jogadores podiam escolher
quaisquer deles sem obrigação de ter que dar satisfação aos outros jogadores da
mesa – isso é frisado de forma explícita. Tem um adendo curioso sobre a maioria
de personagens com Alignment Lawful provavelmente revelariam seus Alignment se
perguntados, mas não é algo obrigatório.
Antes
mesmo de uma descrição mais detalhada, o livro frisa que personagens Chaotic
não são dignos de confiança, nem mesmo por outros personagens Chaotic; que os
mesmos não funcionam bem num grupo com PJs, etc. Em outras palavras os três
funcionam e existem mas um deles não funciona bem em grupos.
E no
final, também ressalta que Alignments não são camisas de força, são guias.
Mesmo que a personagem siga uma dessas correntes de pensamento, não quer dizer
que ela será bem sucedido sempre em segui-la à risca 100% do tempo. Em seguida,
ele dá uma breve descrição do que cada Alignment representa.
Lawful: É a crença de que tudo deve
seguir uma ordem, e que obedecer as regras é a forma natural de viver.
Criaturas com esse Alignment tentarão contar a verdade, obedecer leis justas,
manter promessas e se importarão com o bem estar geral de tudo ao seu redor.
Se algum
tipo de comprometimento precisar ser feito entre um indivíduo e o bem coletivo
do grupo como um todo, um personagem Lawful provavelmente escolherá o bem do
grupo, a menos que as circunstâncias ditem o oposto. O personagem procura
sempre seguir a Lei*. Em seguida, temos uma informação importante: Lawful
também é geralmente visto como um comportamento “bondoso”.
Neutral: O personagem acredita que o
mundo funciona num equilíbrio entre Lei* e Caos*, na importância que nenhuma
das forças desequilibrem essa balança. O indivíduo é importante mas também o
grupo: ambos lados devem trabalhar em harmonia.
Um
personagem neutro tem interesse acima de qualquer convicção na própria
sobrevivência e pode ou não juntar-se a grupos ou trabalhar em equipe,
precisando as vezes de incentivos pra tal. Um Alignment Neutral pode ter seu
comportamento visto como tanto “bondoso” quanto “maligno” dependendo do
contexto ao seu redor, ou simplesmente alheio a essas noções.
Chaotic: O Caos* é diretamente o oposto
a Lei*, crendo que o mundo funciona através da aleatoriedade e que a sorte
governa a realidade. Regras foram feitas pra serem quebradas, desde que você
consiga se safar com segurança. Não há obrigação em manter promessas e tanto a
verdade quanto a mentira são ferramentas úteis para conseguir o que quer.
A
individualidade é mais importante que o bem-estar do grupo. Egoísmo pode ser
considerado algo normal por aqueles que possuem esse Alignment, e por isso
esses personagens não são dignos de confiança como um todo. O comportamento de
um personagem desse Alignment pode ser considerado “maligno”, apesar da
informação extra de que o próprio jogador do personagem decide se Chaotic quer
dizer uma pessoa egoísta e mesquinha ou simplesmente alguém de bem com a vida,
que confia na sorte e não se prende a padrões.
Perceberam
a adição de asteriscos em alguns termos específicos? Lei e Caos aqui não querem
dizer “Lei” como em “seguir regras de uma autoridade soberana” e
sim como “Preceitos ou normas morais e etc”. Em outras palavras, Lei não
é no sentido de legislação e sim no sentido de “moralidade”.
A dinâmica de um grupo depende muito da bússola moral de seus integrantes. |
Firme no
meio desses dois extremos, a neutralidade seria ao mesmo tempo a “capacidade
de abstenção”, “autarquia individual” e talvez a “anarquia”.
Igualmente,
“Caos” não quer dizer “Desordem e bagunça sem propósito”, estando muito
mais propensa a ideia de “Confusão geral dos elementos, antes da formação do
mundo” misturada com “Acaso e ao sabor da sorte” e “Tudo aquilo
que não segue regras impostas”.
Atenham-se
a estes asteriscos que vão continuar sendo usados até o final do texto para
diferenciar as definições normais de Lei e Caos dos termos usados dentro da
lógica do sistema do jogo.
Temos
exemplos de como personagens com diferentes Alignments agiriam na mesma
situação (resumidamente, Lawful colocando os interesses do grupo na frente dos
próprios, Neutral podem ou não colocarem e Chaotic irão sempre pensar em si
mesmos).
E como
regra estranha final temos as Alignment Languages (“Idiomas de Tendência”,
numa tradução livre), onde um personagem tem como comunicar-se com alguém do
mesmo Alignment, mas é incapaz de entender um idioma de um Alignment diferente,
apesar de reconhecer que É uma comunicação de Alignment. Mudar de Alignment faz
com que o personagem esqueça o idioma do anterior e aprenda o novo de maneira
instantânea. É esquisito.
Apesar de
exótico, esse conceito de “Língua de tendência” seria revisitado anos mais
tarde em livros da terceira edição, na forma idiomas voltados pra um propósito
capazes de descrever vividamente coisas sobre os conceitos defendidos pela
tendência em questão, mas incapazes completamente de falar sobre aspectos que
são opostos – quase um newspeak ético.
Como
conclusão a primeira edição, fica a obviedade de que o eixo moral simplista
engloba tanto personagens e npcs que estão nos extremos ou apenas tocam as
vertentes mais brandas de ambos os comportamentos, com a neutralidade oscilando
entre um padrão tanto de “normalidade” quanto de anarquia total. Uma loucura
total.
Mas como já citado no ótimo artigo do Rich Burlew,
o sistema de Alignment implodiu em detrimento de outros aspectos do sistema
como por exemplo, códigos de conduta obrigatório de outras classes que se
misturaram com as definições de Alignment por suas restrições.
É difícil
de ver um jogador que não associe por certas classes como exemplos claros de
certos Alignment, mesmo que o oposto não seja verdade.
Paladinos
(sob o nome de Knight) – nessa edição sendo como uma possível subclasse
de Fighting Men / Fighter, obrigatoriamente Lawful – por exemplo, são regidos
por um código de conduta completamente arbitrário que proíbem ou obrigam a
realização de diversas ações (por exemplo, seguir as ordens de uma ordem
clerical Lawful a serviço do Bem**, obrigação de dar assistência / ajuda a qualquer
criatura excluindo criaturas malignas) em adição ao Alignment
Lawful.
O
paladino segue um código de conduta extra além da moralidade ditada por
seu Alignment, e essas obrigações não são reflexos do Alignment Lawful.
A confusão que o não esclarecimento dessa informação causa é surreal e gera
discussões até hoje.
O eixo
dos Alignments aqui é restritivo mas aberto o suficiente para que os jogadores
possam inserir nuances e diferentes interpretações dentro destes parâmetros, já
que Lei* e Caos* já englobam em suas definições Bem e Mal.
Estava
tudo bem. Meio tumultuado pelo acúmulo de diferentes possibilidades dentro de
cada Alignment, mas funcional. Mas tudo mudou quando a nação do fogo atacou.
Segunda edição: “Crise nos (dos?) Infinitos
Alignments”
O ano é
1978, Lake Geneva. Os Alignments, que eram apenas 3 num único eixo, tornaram-se
nove com a edição de um novo eixo paralelo. O que era apenas
Chaotic/Neutral/Lawful recebeu a adição de Good/Neutral/ Evil”. É o sistema de
Alignment que os jogadores brasileiros estão mais acostumados, que foi trazido
pra cá na tradução da segunda edição de AD&D, pela Editora Abril.
Parafraseando
a moça do Avast que te assusta no meio da madrugada quando fala em voz alta: “suas
definições de Alignment foram atualizadas.”
A adição
do eixo Good-Evil (Bem-Mal) em adição ao Lawful-Chaotic (Lei-Caos) supostamente
serviria pra melhorar as discrepâncias anteriores e melhor identificar
personalidades divergentes que eram agrupadas no mesmo Alignment; no sistema
anterior uma pessoa feliz com a vida que age dependendo da sorte e foge das
regras divide o espaço de Alignment (em regras) com que o cara que
queima orfanatos pra fazer torrada para o café da manhã.
Bem e Mal
foram adicionados… mas sem mudar as definições explícitas sobre o que era Lei*
e Caos*, temos uma confusão formada: 9 Alignments possíveis e nenhuma definição
nova sobre Lei* e Caos* explícita (mas implícita e perceptível), subitamente
Bem e Mal passam a fazer parte desse jogo – mesmo que Lei* englobasse a ideia
comum desse Bem, e Caos* fizesse o mesmo pelo Mal definições anteriores (que
agora não estão mais válidas, mas isso não é dito explicitamente).
Vamos a
uma descrição por alto de cada um, e o que podemos inferir a partir destas
mesmas, já que não estão mais separadas individualmente por Alignment pra
perceber o tamanho do balaio causado por isso.
E formamos algumas noções clássicas, embora nem sempre sejam claras o que essas noções fossem |
Chaotic
Evil:
Liberdade, aleatoriedade, individualismo e egoísmo. “Promove caos e o mal”, mas
não explica o que isso quer dizer além de “quer controlar as coisas aos seus
caprichos”.
Chaotic
Neutral:
Liberdade, aleatoriedade e desordem são as palavras imperativas. Se opõe ao bem
e ao mal porque as “forças do Caos ficariam desamparadas com isso”, mesmo sem
definir o que seriam.
Chaotic
Good:
Liberdade, aleatoriedade, individualismo e valorização da vida alheia.
Promove “espalhar a palavra dos Deuses Chaotic Good e espalhar estes valores
pelo mundo”, mesmo que nenhum outro Alignment fale ou obrigue religiosidade
como parte de suas atribuições ou definições.
Até aqui
ficou claro que a definição de Chaotic perdeu a nuance de ser “tudo aquilo
que não segue as regras impostas” e recebeu a carga de “anarquia”
(que era do Neutral) e “desordem e bagunça sem propósitos”, que nem
estava lá anteriormente. Também podemos perceber Evil e Good são resumidas pela
sua postura diante do que pensam / fazem em relação aos outros.
Conferindo
os Alignments Lawful, isso fica ainda mais claro.
Lawful
Evil:
Respeitam as leis e ordem restrita, mas desprezam a vida, beleza, verdade e
liberdade. Querem forçar sua vontade no mundo através de disciplina.
Lawful
Neutral: Vê
regulamentos, leis e ordem como o mais importante, acima do conflito de Bem e
Mal. Personagens desse Alignment veem a ordem e a lei como o mais importante e
que Bem e Mal são irrelevantes além do seu propósito de trazer a ordem(!?).
Lawful
Good:
Respeita leis e ordens mas procura trazer o bem em comum através das mesmas.
Certas liberdade individuais devem ser sacrificadas em prol de um bem maior mas
a verdade, a lei e a beleza são os valores mais importantes. Cita também que
“Os benefícios de uma sociedade assim são para ser compartilhados a todos”,
mesmo que nenhum outro Alignment cite sociedade.
Com essas
informações, Lawful também teve suas definições alteradas de forma silenciosa,
mas perceptível. Lawful quer dizer “lei” no sentido de “regulações e
legislação de um poder soberano” ao invés de apenas a “ordem natural”.
Lawful perdeu o aspecto de “Bem maior” mas manteve o aspecto de “norma moral”,
mesmo que isso seja contraditório. Também há uma discrepância de contar
mentiras nos próprios Alignments Lawful, mas podemos inferir que isso seja
influência do Evil.
Será que
a influência do Evil é tão perceptível assim na neutralidade? Vamos conferir!
Neutral
Evil: Um
personagem desse Alignment vê Lei e Caos como desnecessário, porque o Mal é ao
mesmo tempo finalidade, ferramenta e meio. Ambos podem ser utilizados mas são
coisas descartáveis para trazer o máximo de mal ao mundo. Ooookay…
True
Neutral (Neutral
nos dois eixos): O
famoso em cima do muro. Vê todos os outros Alignments – mas não a si mesmo –
como facetas de algo maior. Todas as coisas devem permanecer em equilíbrio para
manter o Status Quo, e nada pode / deve ser mudado permanentemente, apenas
temporariamente. A Natureza irá prevalecer e manter as coisas da maneira que
deveriam ser desde que o contexto ao redor não seja alterado por ações
externas. Dessa forma, o True Neutral é um misto simultâneo de “tirar o corpo
fora” e “extremista”.
Neutral
Good: Esse
Alignment diz que devem haver combinações de regulações e liberdades
individuais para que atinjam as melhores condições de vidas possíveis para
todas criaturas inteligentes do mundo. É o menos descritivo de todos
Alignments, é o famoso “te vira aí pra ser bom”.
Mas se
Neutral perdeu o aspecto de “anarquia” quando associado com outros
Alignments, a “capacidade de abstenção” foi exacerbada de forma a
aumentar o valor/força do Alignment companheiro.
Evil
torna-se algo autodestrutivo e sem propósito quando exacerbado pela abstenção
do Neutral, enquanto que o Good apenas mantém-se numa não-oposição e numa
não-dicotomia de não interferência pelo “bem de todos”. Vale ressaltar que isso
é também o começo de uma das coisas mais insatisfatórias de D&D como um
todo, onde você pega o Mal, multiplica por -1 e tem como resultado da equação,
o Bem. Falarei mais sobre isso no na próxima edição, na análise de 2 livros bem
específicos…
True
Neutral por si só merece comentários: é uma grande contradição que consegue ao
mesmo tempo ser o único que manteve um aspecto da edição anterior através do
elemento da “anarquia” e ter esse mesmo elemento exacerbado pelas
próprias adições dessa edição.
Sendo
ativamente incentivada pela manutenção e oposição do poder de criaturas de
outros eixos e Alignments, ao mesmo tempo que reduz-se a um fatalismo inegável
torna-se uma escolha filosófica, True Neutral pode variar do “não tomarei
partido” e não me meterei até “eu devo aniquilar todos extremos”
sem nenhum tipo de compaixão. Esse segundo comportamento, alias, aparece em
alguns mundos publicados como certos npcs chave de Greyhawk, onde personagens
atacam forças do bem e mal igualmente em busca de um “equilíbrio” – se você
achou estranho, não está sozinho, porque não faz sentido pra mim também.
Ao longo
das descrições podemos ver uma série de informações que se contradizem: afinal,
se tanto um Chaotic Evil tanto quanto um Lawful Evil querem ambos “impor sua
vontade”, mesmo Chaotic e Lawful sendo opostos – e isso não é causado pela
parcela Evil, já que Neutral Evil é o mal sem propósito, basicamente algo
autodestrutivo – então qual a diferença prática entre ambos?
Há
diversas descrições conflitantes, onde Lawful é seguir regras e suas palavras,
mas ao mesmo tempo Lawful Evil desprezam a verdade; Chaotic Neutral é “se opor
ao bem e mal” e instaurar o Caos, mesmo que Caos seja a anarquia (e por si,
tocante do True Neutral).
Tem
também a estranhíssima defesa da “verdade, lei e beleza” do
Lawful Good, que eu não entendi até hoje, aproximadamente 22 anos de ter lido
pela primeira vez.
E por
enquanto, é só isso, das primeiras duas (e meia) edições de D&D. Mais
tarde, só fica mais estranho. :v