terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Tendência/Alinhamento: uma resenha anacrônica de eras passadas – parte 1


Esse texto foi originalmente escrito para o site RPGnotícias em 22/03/2018 e está sendo republicado no meu blog pessoal para fins de arquivo devido a um problema com a hospedagem do site!

Existem poucos tópicos que geral uma discussão maior no sistema de D&D desde sua criação que Alignments/Tendências. Muitas destas discussões surgiram por culpa dos próprios autores de livros, com visões divergentes.

Muitas pessoas possuem diferentes ideias do que Alignments/Tendências são e, em geral, todas essas visões divergentes têm simultaneamente confirmação e falta de apoio ao longo dos livros e anos, com contradições às vezes surgindo dentro do mesmo livro.

Primeiro, vamos dar uma olhada na trajetória de Alignment/Tendências ao longo da história de D&D como um todo. Além do contexto dentro do jogo, ressaltarei alguns pontos importantes dignos de nota ao longo das edições, quando for necessário para uma compreensão maior ou melhor da ideia como um todo.

Nota: Ao longo desse texto eu vou tentar manter a ideia de Alignment ao invés do termo Tendência, exceto quando for muito repetitivo, porque Tendência é uma das traduções possíveis, mas não a única e nem a melhor.

O início: “Alignment Begins”

Lá nos idos de 1977, Gary Gygax e Dave Arneson criaram um sistema de conduta moral simplista para um jogo simplista.

Essa mecânica eram um código de comportamento, maneira de viver que guiava ações e pensamentos de personagens jogadores (PJ) e monstros: um único eixo moral absoluto com uma intersecção entre dois extremos, e se chamava de Alignment.

Existiam 3 Alignments (Lawful, Neutral e Chaotic) e os jogadores podiam escolher quaisquer deles sem obrigação de ter que dar satisfação aos outros jogadores da mesa – isso é frisado de forma explícita. Tem um adendo curioso sobre a maioria de personagens com Alignment Lawful provavelmente revelariam seus Alignment se perguntados, mas não é algo obrigatório.

Antes mesmo de uma descrição mais detalhada, o livro frisa que personagens Chaotic não são dignos de confiança, nem mesmo por outros personagens Chaotic; que os mesmos não funcionam bem num grupo com PJs, etc. Em outras palavras os três funcionam e existem mas um deles não funciona bem em grupos.

E no final, também ressalta que Alignments não são camisas de força, são guias. Mesmo que a personagem siga uma dessas correntes de pensamento, não quer dizer que ela será bem sucedido sempre em segui-la à risca 100% do tempo. Em seguida, ele dá uma breve descrição do que cada Alignment representa.

Lawful: É a crença de que tudo deve seguir uma ordem, e que obedecer as regras é a forma natural de viver. Criaturas com esse Alignment tentarão contar a verdade, obedecer leis justas, manter promessas e se importarão com o bem estar geral de tudo ao seu redor.

Se algum tipo de comprometimento precisar ser feito entre um indivíduo e o bem coletivo do grupo como um todo, um personagem Lawful provavelmente escolherá o bem do grupo, a menos que as circunstâncias ditem o oposto. O personagem procura sempre seguir a Lei*.  Em seguida, temos uma informação importante: Lawful também é geralmente visto como um comportamento “bondoso”.

Neutral: O personagem acredita que o mundo funciona num equilíbrio entre Lei* e Caos*, na importância que nenhuma das forças desequilibrem essa balança. O indivíduo é importante mas também o grupo: ambos lados devem trabalhar em harmonia.

Um personagem neutro tem interesse acima de qualquer convicção na própria sobrevivência e pode ou não juntar-se a grupos ou trabalhar em equipe, precisando as vezes de incentivos pra tal. Um Alignment Neutral pode ter seu comportamento visto como tanto “bondoso” quanto “maligno” dependendo do contexto ao seu redor, ou simplesmente alheio a essas noções.

Chaotic: O Caos* é diretamente o oposto a Lei*, crendo que o mundo funciona através da aleatoriedade e que a sorte governa a realidade. Regras foram feitas pra serem quebradas, desde que você consiga se safar com segurança. Não há obrigação em manter promessas e tanto a verdade quanto a mentira são ferramentas úteis para conseguir o que quer.

A individualidade é mais importante que o bem-estar do grupo. Egoísmo pode ser considerado algo normal por aqueles que possuem esse Alignment, e por isso esses personagens não são dignos de confiança como um todo. O comportamento de um personagem desse Alignment pode ser considerado “maligno”, apesar da informação extra de que o próprio jogador do personagem decide se Chaotic quer dizer uma pessoa egoísta e mesquinha ou simplesmente alguém de bem com a vida, que confia na sorte e não se prende a padrões.

Perceberam a adição de asteriscos em alguns termos específicos? Lei e Caos aqui não querem dizer “Lei” como em “seguir regras de uma autoridade soberana” e sim como “Preceitos ou normas morais e etc”. Em outras palavras, Lei não é no sentido de legislação e sim no sentido de “moralidade”.

A dinâmica de um grupo depende muito da bússola moral de seus integrantes.

Firme no meio desses dois extremos, a neutralidade seria ao mesmo tempo a “capacidade de abstenção”, “autarquia individual” e talvez a “anarquia”.

Igualmente, “Caos” não quer dizer “Desordem e bagunça sem propósito”, estando muito mais propensa a ideia de “Confusão geral dos elementos, antes da formação do mundo” misturada com “Acaso e ao sabor da sorte” e “Tudo aquilo que não segue regras impostas”.

Atenham-se a estes asteriscos que vão continuar sendo usados até o final do texto para diferenciar as definições normais de Lei e Caos dos termos usados dentro da lógica do sistema do jogo.

Temos exemplos de como personagens com diferentes Alignments agiriam na mesma situação (resumidamente, Lawful colocando os interesses do grupo na frente dos próprios, Neutral podem ou não colocarem e Chaotic irão sempre pensar em si mesmos).

E como regra estranha final temos as Alignment Languages (“Idiomas de Tendência”, numa tradução livre), onde um personagem tem como comunicar-se com alguém do mesmo Alignment, mas é incapaz de entender um idioma de um Alignment diferente, apesar de reconhecer que É uma comunicação de Alignment. Mudar de Alignment faz com que o personagem esqueça o idioma do anterior e aprenda o novo de maneira instantânea. É esquisito.

Apesar de exótico, esse conceito de “Língua de tendência” seria revisitado anos mais tarde em livros da terceira edição, na forma idiomas voltados pra um propósito capazes de descrever vividamente coisas sobre os conceitos defendidos pela tendência em questão, mas incapazes completamente de falar sobre aspectos que são opostos – quase um newspeak ético.

Como conclusão a primeira edição, fica a obviedade de que o eixo moral simplista engloba tanto personagens e npcs que estão nos extremos ou apenas tocam as vertentes mais brandas de ambos os comportamentos, com a neutralidade oscilando entre um padrão tanto de “normalidade” quanto de anarquia total. Uma loucura total.

Mas como já citado no ótimo artigo do Rich Burlew, o sistema de Alignment implodiu em detrimento de outros aspectos do sistema como por exemplo, códigos de conduta obrigatório de outras classes que se misturaram com as definições de Alignment por suas restrições.

É difícil de ver um jogador que não associe por certas classes como exemplos claros de certos Alignment, mesmo que o oposto não seja verdade.

Paladinos (sob o nome de Knight) – nessa edição sendo como uma possível subclasse de Fighting Men / Fighter, obrigatoriamente Lawful – por exemplo, são regidos por um código de conduta completamente arbitrário que proíbem ou obrigam a realização de diversas ações (por exemplo, seguir as ordens de uma ordem clerical Lawful a serviço do Bem**, obrigação de dar assistência / ajuda a qualquer criatura excluindo criaturas malignas) em adição ao Alignment Lawful.

O paladino segue um código de conduta extra além da moralidade ditada por seu Alignment, e essas obrigações não são reflexos do Alignment Lawful. A confusão que o não esclarecimento dessa informação causa é surreal e gera discussões até hoje.

O eixo dos Alignments aqui é restritivo mas aberto o suficiente para que os jogadores possam inserir nuances e diferentes interpretações dentro destes parâmetros, já que Lei* e Caos* já englobam em suas definições Bem e Mal.

Estava tudo bem. Meio tumultuado pelo acúmulo de diferentes possibilidades dentro de cada Alignment, mas funcional. Mas tudo mudou quando a nação do fogo atacou.

Segunda edição: “Crise nos (dos?) Infinitos Alignments”

O ano é 1978, Lake Geneva. Os Alignments, que eram apenas 3 num único eixo, tornaram-se nove com a edição de um novo eixo paralelo. O que era apenas Chaotic/Neutral/Lawful recebeu a adição de Good/Neutral/ Evil”. É o sistema de Alignment que os jogadores brasileiros estão mais acostumados, que foi trazido pra cá na tradução da segunda edição de AD&D, pela Editora Abril.
Parafraseando a moça do Avast que te assusta no meio da madrugada quando fala em voz alta: “suas definições de Alignment foram atualizadas.”

A adição do eixo Good-Evil (Bem-Mal) em adição ao Lawful-Chaotic (Lei-Caos) supostamente serviria pra melhorar as discrepâncias anteriores e melhor identificar personalidades divergentes que eram agrupadas no mesmo Alignment; no sistema anterior uma pessoa feliz com a vida que age dependendo da sorte e foge das regras divide o espaço de Alignment (em regras) com que o cara que queima orfanatos pra fazer torrada para o café da manhã.

Bem e Mal foram adicionados… mas sem mudar as definições explícitas sobre o que era Lei* e Caos*, temos uma confusão formada: 9 Alignments possíveis e nenhuma definição nova sobre Lei* e Caos* explícita (mas implícita e perceptível), subitamente Bem e Mal passam a fazer parte desse jogo – mesmo que Lei* englobasse a ideia comum desse Bem, e Caos* fizesse o mesmo pelo Mal definições anteriores (que agora não estão mais válidas, mas isso não é dito explicitamente).

Vamos a uma descrição por alto de cada um, e o que podemos inferir a partir destas mesmas, já que não estão mais separadas individualmente por Alignment pra perceber o tamanho do balaio causado por isso.

E formamos algumas noções clássicas, embora nem sempre sejam claras o que essas noções fossem

Chaotic Evil: Liberdade, aleatoriedade, individualismo e egoísmo. “Promove caos e o mal”, mas não explica o que isso quer dizer além de “quer controlar as coisas aos seus caprichos”.

Chaotic Neutral: Liberdade, aleatoriedade e desordem são as palavras imperativas. Se opõe ao bem e ao mal porque as “forças do Caos ficariam desamparadas com isso”, mesmo sem definir o que seriam.

Chaotic Good:  Liberdade, aleatoriedade, individualismo e valorização da vida alheia. Promove “espalhar a palavra dos Deuses Chaotic Good e espalhar estes valores pelo mundo”, mesmo que nenhum outro Alignment fale ou obrigue religiosidade como parte de suas atribuições ou definições.
Até aqui ficou claro que a definição de Chaotic perdeu a nuance de ser “tudo aquilo que não segue as regras impostas” e recebeu a carga de “anarquia” (que era do Neutral) e “desordem e bagunça sem propósitos”, que nem estava lá anteriormente. Também podemos perceber Evil e Good são resumidas pela sua postura diante do que pensam / fazem em relação aos outros.

Conferindo os Alignments Lawful, isso fica ainda mais claro.

Lawful Evil: Respeitam as leis e ordem restrita, mas desprezam a vida, beleza, verdade e liberdade. Querem forçar sua vontade no mundo através de disciplina.

Lawful Neutral: Vê regulamentos, leis e ordem como o mais importante, acima do conflito de Bem e Mal. Personagens desse Alignment veem a ordem e a lei como o mais importante e que Bem e Mal são irrelevantes além do seu propósito de trazer a ordem(!?).

Lawful Good: Respeita leis e ordens mas procura trazer o bem em comum através das mesmas. Certas liberdade individuais devem ser sacrificadas em prol de um bem maior mas a verdade, a lei e a beleza são os valores mais importantes. Cita também que “Os benefícios de uma sociedade assim são para ser compartilhados a todos”, mesmo que nenhum outro Alignment cite sociedade.

Com essas informações, Lawful também teve suas definições alteradas de forma silenciosa, mas perceptível. Lawful quer dizer “lei” no sentido de “regulações e legislação de um poder soberano” ao invés de apenas a “ordem natural”. Lawful perdeu o aspecto de “Bem maior” mas manteve o aspecto de “norma moral”, mesmo que isso seja contraditório. Também há uma discrepância de contar mentiras nos próprios Alignments Lawful, mas podemos inferir que isso seja influência do Evil.
Será que a influência do Evil é tão perceptível assim na neutralidade? Vamos conferir!

Neutral Evil: Um personagem desse Alignment vê Lei e Caos como desnecessário, porque o Mal é ao mesmo tempo finalidade, ferramenta e meio. Ambos podem ser utilizados mas são coisas descartáveis para trazer o máximo de mal ao mundo. Ooookay…

True Neutral (Neutral nos dois eixos): O famoso em cima do muro. Vê todos os outros Alignments – mas não a si mesmo – como facetas de algo maior. Todas as coisas devem permanecer em equilíbrio para manter o Status Quo, e nada pode / deve ser mudado permanentemente, apenas temporariamente. A Natureza irá prevalecer e manter as coisas da maneira que deveriam ser desde que o contexto ao redor não seja alterado por ações externas. Dessa forma, o True Neutral é um misto simultâneo de “tirar o corpo fora” e “extremista”.

Neutral Good: Esse Alignment diz que devem haver combinações de regulações e liberdades individuais para que atinjam as melhores condições de vidas possíveis para todas criaturas inteligentes do mundo. É o menos descritivo de todos Alignments, é o famoso “te vira aí pra ser bom”.

Mas se Neutral perdeu o aspecto de “anarquia” quando associado com outros Alignments, a “capacidade de abstenção” foi exacerbada de forma a aumentar o valor/força do Alignment companheiro.

Evil torna-se algo autodestrutivo e sem propósito quando exacerbado pela abstenção do Neutral, enquanto que o Good apenas mantém-se numa não-oposição e numa não-dicotomia de não interferência pelo “bem de todos”. Vale ressaltar que isso é também o começo de uma das coisas mais insatisfatórias de D&D como um todo, onde você pega o Mal, multiplica por -1 e tem como resultado da equação, o Bem. Falarei mais sobre isso no na próxima edição, na análise de 2 livros bem específicos…

True Neutral por si só merece comentários: é uma grande contradição que consegue ao mesmo tempo ser o único que manteve um aspecto da edição anterior através do elemento da “anarquiae ter esse mesmo elemento exacerbado pelas próprias adições dessa edição.

Sendo ativamente incentivada pela manutenção e oposição do poder de criaturas de outros eixos e Alignments, ao mesmo tempo que reduz-se a um fatalismo inegável torna-se uma escolha filosófica, True Neutral pode variar do “não tomarei partido” e não me meterei até “eu devo aniquilar todos extremos” sem nenhum tipo de compaixão. Esse segundo comportamento, alias, aparece em alguns mundos publicados como certos npcs chave de Greyhawk, onde personagens atacam forças do bem e mal igualmente em busca de um “equilíbrio” – se você achou estranho, não está sozinho, porque não faz sentido pra mim também.

Ao longo das descrições podemos ver uma série de informações que se contradizem: afinal, se tanto um Chaotic Evil tanto quanto um Lawful Evil querem ambos “impor sua vontade”, mesmo Chaotic e Lawful sendo opostos – e isso não é causado pela parcela Evil, já que Neutral Evil é o mal sem propósito, basicamente algo autodestrutivo – então qual a diferença prática entre ambos?

Há diversas descrições conflitantes, onde Lawful é seguir regras e suas palavras, mas ao mesmo tempo Lawful Evil desprezam a verdade; Chaotic Neutral é “se opor ao bem e mal” e instaurar o Caos, mesmo que Caos seja a anarquia (e por si, tocante do True Neutral).

Tem também a estranhíssima defesa da “verdade, lei e beleza” do Lawful Good, que eu não entendi até hoje, aproximadamente 22 anos de ter lido pela primeira vez.

E por enquanto, é só isso, das primeiras duas (e meia) edições de D&D. Mais tarde, só fica mais estranho. :v

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Interpretação e Otimização: Existe correlação?

RPG é um jogo de interpretação de papéis. Isso, todo mundo sabe – ou senão sabe, bem-vindo ao RPG, e esse artigo não é o melhor lugar pra você começar!

Vamos fazer uma pergunta importante aqui: “Você sabe a diferença entre interpretar e representar? Qual a correlação da otimização e interpretação? “

Segundo meu dicionário, interpretar é "Representar um papel, Reproduzir ou exprimir a intenção ou o pensamento de". Isso significa que você, ao assumir o papel de um personagem fictício num mundo igualmente fictício já estará interpretando em qualquer ação que desempenhe.

Ao dizer quais serão as ações do seu avatar fictício, você já está ~interpretando~ o comportamento, reações e atitudes desde personagem dentro dessa narrativa compartilhada. Cada jogador controla seu personagem desta forma, complementados pelos personagens não—jogadores (NPCs), interpretados pelo narrador / mestre. Existem jogos que propõem uma experiência diferente, como por exemplo, a ausência de um narrador / mestre para uma experiência de história verdadeiramente compartilhada entre todos jogadores.

Perceba que “interpretar” quer dizer apenas estar presente no jogo. Mas e a representação, Phil? Onde ela nisso tudo?

A resposta é simples: Ela não entra.

Representar, ou (segundo meu Michaelis) “Apresentar-se no palco ou em qualquer espetáculo público; desempenhar funções de ato” é uma teatralidade opcional, ás vezes agregada a interpretação (isso é, seu papel fictício).

Pera, como assim teatralidade é OPCIONAL!?
Dentro de um ambiente fictício da narrativa compartilhada, falar “Vou tentar subornar o guarda para que passemos pelo portão” deveria ter o mesmo peso que o jogador declamar “Ó protetor dos portais, sabes que faço um apelo a ti com um agrado para que possais olhar para o outro lado.”.  Nesta narrativa não existe distinção: a mensagem e ações passadas são as mesmas: “guarda, toma dinheiro”.

Por que então temos tanta reclamação quanto ao primeiro e tantos elogios em relação ao segundo?

Estamos acostumados a achar que mais rebuscado / elaborado é melhor; ao invés de acharmos um meio-termo agradável entre interpretação e representação, acabamos ignorando a primeira em defesa da segunda. Entretanto, naquele outro artigo, elaboro mais e falo sobre isso – se oassunto te interessou, sempre vale a pena ler!

Temos uma ideia de um eixo / parâmetro / régua que começa no modo automático (personagem meramente reativo), e termina na teatralidade excessiva (onde toda fala de personagem é feita pelo jogador como discursos 1:1), onde o primeiro é algo ruim e o segundo bom. O importante é perceber que em excesso, ambos são nocivos ao jogo como narrativa compartilhada.

Como assim "Interpretar Representar demais é ruim!?""
Agora que a diferença entre representar e interpretar estão bem definidas e fora do caminho, vamos falar sobre otimização de personagens.

Parafraseando uma frase que é papagaiada por tempos imemoriais, desde que a internet é a internet: “Um jogador apenas interessado em combos não quer saber de interpretar seu personagem!”

A atitude de otimizar uma ficha de personagem consiste em minimizar os pontos fracos e fortalecer os já fortes do personagem em questão. Logo, isso quer dizer que ele ficará melhor no que faz – e se o que o personagem interage dessa forma com o mundo fictício, um personagem otimizado fará essa interação com o mundo fictício de forma mais eficaz.

Um personagem otimizado por interesse em seu papel fictício, em relação a sua capacidade de sobrevivência desempenha melhor suas funções: 
 ● Um guerreiro que atinja melhor os oponentes e sobreviva melhor os perigos é um guerreiro bem-sucedido e consequentemente, tem maior chance de ser um personagem que permanece mais tempo em mesa.
 ● Um ladino que consegue causar o máximo de sucesso possível em suas jogadas de perícias tem a capacidade de evitar perigos de forma mais eficaz e com isso trazer maior sucesso para o grupo como um todo.

Veja que combos do nível “posso fazer tudo melhor que todos da mesa” não são otimização. Estes são combos que ultrapassam o nível de aceitação e torna-se algo nocivo. Mas a otimização per se, isto é, a capacidade de fazer bem aquilo que se propõe a fazer não é algo inerentemente ruim – e pelo contrário, é algo até exigido para o bom funcionamento diante de perigos enfrentados por personagens.

O oposto também existe, com pessoas fazendo personagens mecanicamente deficientes, de forma que ele será extremamente malsucedido em atividades que seriam o esperado, além de causar problemas para com seu papel dentro de um grupo.
 ● Um guerreiro que seja fraco ou possua defesas baixas não conseguirá proteger os aliados de inimigos e seu grupo não terá linha de frente;
 ● Um ladino que não é ágil o suficiente para desarmar armadilhas ou perceptivo o suficiente para detectá-las terá uma carreira muito curta como batedor.

Um personagem mecanicamente fraco não é “mais interpretativo” por ter carência numa área. Isso é o equivalente na vida real de um médico que tenha um ataque de pânico ao ver sangue, ou um bombeiro com fobia paralisante ao fogo. Eles não tornam-se mais interessantes por isso, tornam-se apenas incapazes de desempenhar a função a qual deveriam fazer para auxiliar outra pessoa.

Então, temos outro eixo, que parte do completamente inapto para fazer o que é o proposto, ao completamente combado e tomando os holofotes da mesa com seus combos. Um personagem remotamente normal ficaria no meio do eixo, talvez pendendo ligeiramente para um dos lados. Um dos extremos pode causar desavenças na mesa justamente por ser eficaz demais ou inútil demais.

Só lembrar!
Aí você que leu até aqui e conseguiu entender as diferenças das definições, e suas ramificações, não deve nem se surpreender com a resposta da pergunta inicial: “nenhuma”. Não há correlação entre uma ficha funcional (ou não) com ou interpretar bem (ou mal).

Ser fraco / forte mecanicamente está num eixo, que chamaremos de X; ser representativo está num eixo, que chamaremos de Y. Esses dois eixos não tem nenhuma intersecção, são duas linhas retas independentes que avaliam coisas diferentes.

Espero ter esclarecido algo. 

domingo, 6 de outubro de 2013

Miniresenha de 3rd Birthday (e um pouco sobre a série Parasite Eve)


Com apenas quatro horas de jogo de 3rd Birthday e (talvez mais, porque eu ainda tou tentando pra ver se melhora), vou dar meu parecer sobre o que eu já vi até agora. A franquia Parasite Eve era uma das grandes novidades da Sony no meiado dos anos 90. Em pleno auge da era PS1, após o lançamento do Final Fantasy 7, a empresa Square tinha carta branca pra fazer qualquer tipo de jogo e ser sucesso de vendas. Tivemos jogos de luta Ehrgeiz e Tobal, o shmups como o fantástico Einhander e os hoje em dia clássicos rpgs como Chrono Cross, Saga Frontier (que eu já falei aqui no blog) e é claro, Parasite Eve.

Agora, com armas militares~
Parasite Eve era um estranho no mundo da fantasia tecnológica ou medieval de outros RPGs; se passava no mundo moderno (o nosso mundo!) e ao invés de cavaleiros e dragões você tinha mutantes e armas de fogo. Era uma experiência diferente que teve uma continuação na forma do Parasite Eve 2, também para playstation 1. Fato que pouca gente sabe é que Parasite Eve antes de um jogo foi um livro e que apesar de ter inspirado o jogo e ser referenciado diretamente como parte do plot do primeiro jogo, é uma leitura suplementar para os jogos que servem com uma vaga continuação. O mesmo vale para o longa metragem nipônico de mesmo nome.

Você está preso pelo crime de ser fabulosa~ ♥
ENFIM. O importante é que Parasite Eve (ambos) eram bons e... 3rd birthday (para o portátil PSP) não está demonstrando ser bom. 

A base do jogo é que no natal de 2012 (coisas ruins sempre acontecem nos natáis da Aya...!) monstros chamados "Twisted" (literalmente, "retorcidos" ou "desviados") que atacam e consumem humanos e suas cidades. As estrutures criadas pelos Twisted se chamam "Babel" e ameaçam destruir a humanidade. Aya Brea é descoberta sem suas memórias, e uma unidade de combate descobre que usando seus poderes ela é capaz de mandar a sua "alma" para outros corpos; com o auxílio de uma máquina misteriosa chamada Overdrive, Aya projeta sua consciência no passado para alterá-lo. Na gameplay, Aya pode "possuir" soldados em situações de conflito contra seus inimigos em tempo real: caso o soldado seja ferido, ela pode trocar ou mesmo rapidamente mudar de corpo hospedeiros para ganhar uma vantagem tática. Cabe a Aya Brea descobrir o mistério deles e recuperar sua amnésia conveniente que a fez mudar de personalidade.

Estou tentando dar o benefício da dúvida ao 3rd Birthday, a tentativa de "renascimento" pra franquia Parasite Eve é ruim, muito ruim. É uma premissa excelente se não fosse por dois problemas gritantes de execução.

Com 38 anos, Aya é uma das
protagonistas mais velha da Square-Enix!!
A jogabilidade é péssima. Os inimigos demoram uma eternidade pra morrer (todos eles) a menos que você use a arma certa; nada errado aí, exceto que a mecânica de munição limitada e inimigos causam dano em excesso e tem números em excesso, uma combinação que te perder soldados / corpos de forma vertiginosamente veloz. 

Como as roupas de Aya rasgam ao receber dano, sua defesa caí. Quanto mais você apanha (vou comentar mais adiante...), mais dano você toma, é um ciclo vicioso da porrada doída. Estou jogando no modo normal e mesmo assim o inimigo mais "comum" é capaz de me matar em 3 golpes; com a defesa baixa, um inimigo além do mais comum me derruba em 2 golpes bem dados e se o primeiro pegar, você VAI tomar o segundo. 

Granadas, grandas! Quero mais granadas!
Quando você percebe que ao receber um golpe do inimigo você fica atordoado pelo impacto que impede de se recuperar, um único inimigo rápido mata Aya facilmente. Aí, quando você morre com o soldado com a arma certa pra situação tem que esperar até que outro ressurja, enquanto dispara suas armas que mal causam dano (e em alguns casos, nem causam) nos inimigos que ainda estão na sala. Ao conseguir eliminar os inimigos / realizar o objetivo, você pode ir pra próxima sala e fazer o mesmo na próxima, indefinidamente até chegar num boss obscenamente poderoso onde você precisa dar inúmeros retries.  

O jogo possui uma das piores câmeras que eu já vi com lock-on: sinto que em momentos meu verdadeiro inimigo é a incapacidade de entender o que eu estou fazendo. Inimigos andam no teto e o lock-on foca completamente neles de forma que eu não enxergue nada da minha personagem além do torso pra cima. Não seria problema, se a quantidade de inimigos com golpes diferentes (alguns rasteiros) não fosse tão comum em cada cena de combate. Não tenho nada contra jogos difíceis, desde que a dificuldade seja algo plausível; jogos difíceis por problemas de interface são complicados de aturar.

Outro problema extremamente importante é... a Aya. Foi durante dois jogos uma mulher forte num campo de batalha sem perder sua feminilidade. Então... WHAM! Não sei o que houve, mas aparentemente, perder a memória fez com que Aya virasse um capacho genérico e um imã de idiotas. E se não bastasse o fato da receber todo tipo de tratamento misógino de seus "aliados" (até onde eu vi, só o personagem Blank a trata sem esse tipo de desdém), virou uma menininha confusa submissa e sexualizada.

Contém: Lágrimas e Sangue do jogador
Minha organela sagrada! A ultrassexualização da personagem no estereótipo japonês de submissão é nojenta, ainda mais aliado com o fato dela perder roupa ao receber dano. Poxa, a mulher tá numa zona de guerra, precisa mesmo ficar cada vez mais pelada a cada golpe que recebe? Ok, Nomura, nós sabemos que a Aya Brea é a gostosa. Mas precisa realmente ficar esfregando isso na minha cara?

Enquanto eu procurava no google, achei imagens da Aya com roupa de bunny girl. Squeenix, sério. Não, né? Aya é a mulher que disparou o míssil termo-nuclear que destruiu a estátua da liberdade no processo de destruir o SER SUPREMO, antes dela mesmo saltar do helicóptero e terminar o serviço. Ela merece um pouco mais de respeito que isso.

Ok, a parte boa? Como sempre, as CGs são ótimas e mantém a qualidade Square-Enix de ser. A soundtrack é fabulosamente boa e passa uma ambientação excelente (alias, é um dos fatores que eu não cheguei a simplesmente desistir, as músicas empolgam assim). Graficamente, o jogo é muito bom e explora bastante a capacidade do PSP, mesmo que tenha problemas com a câmera como descrevi acima.

Ela merece que tenha. Sério.
Não me decepcionem assim, Square-Enix!
A menos que tenha uma reviravolta muito grande e a história fique twisted de ponta cabeça (viram o que eu fiz aqui?), meu veredito é "Reprovado". É claro, SE tiver essa reviravolta, eu vou fazer uma parte dois com a análise completa!

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sharingan: O atalho pra um quarto acolchoado

Vamos fazer algo diferente dessa vez e fazer uma análise literária parcial (apenas alguns personagens seletos) de Naruto, e ver que talvez, ou o Kishimoto tenha pesquisado mais que pareça, ou as coincidências são fantásticas. E a pergunta aqui é “Porque os Uchihas são loucos?” Talvez, tenhamos uma explicação pseudobiológica pra isso!

Aviso: entender esse artigo exige conhecimento básico de Naruto.

Zoídoido
É dito que todo usuário de Sharingan, além de seus poderes doidos todos (dentre alguns: visão através de ilusões, diferenciar clones de pessoas reais, criar ilusões apenas com contato visual, atear fogo no ponto focal, controlar bestas de destruição em massa, impelir objetos ou pessoas pra outra dimensão e criar uma armadura espectral para defender-se de seus oponentes) também concede ao usuário memória perfeita – que é a base do seu poder original, a cópia. Uma vez que veja algo com o Sharingan, nunca mais esquecerá. Tudo bem até aqui? Então, é aí que mora o perigo.

O Sharingan, traço icônico do clã Uchiha (além de cuspir fogo) concede todas essas vantagens. Mas elas são tão vantagens assim? Em combate, sim. Mas e fora dele? Lembremos que o Sharingan de um Uchiha desperta em momentos de trauma. Sasuke despertou o seu durante o massacre do clã, onde cada um de seus parentes vivos (exceto o irmão, o instigador de tal massacre) morreu. E com o Sharingan, ele vai manter essas memórias pra sempre, sem perder ou omitir algum detalhe [1]. Não vale apenas para traumas, porém; informações que mais tarde serão inúteis, como o momento do exame chuunin onde Rock Lee foi capaz de facilmente sobrepujá-lo, vão permanecer para sempre na memória de Sasuke, tendo como única defesa o bloqueio total dessas memórias – que uma vez vencido, faz com que retornem imediatamente com clareza total. Não é a toa que ele é traumatizado.

Olha o passarinho!
Não entendo muito de neurologia, mas fazendo uma analogia de computação, acredito que manter neurônios  em estado “somente leitura” não deve ser saudável para a saúde mental de um indivíduo. Esse tipo de memória perfeita, aliado a sentidos mais apurados é uma faca de dois gumes contra a saúde mental de um Uchiha: com seu Sharingan ativo, ele recebe uma leva de vantagens, e sem ele, não ganha traumas futuros – num mundo de conflito como o de Naruto, não adianta você pensar no depois se não sobreviver o agora. Estamos ainda falando de personagens que podem desativar seus poderes visuais, ao contrário daqueles com Mangekyou Eterno. Imagino que  tais personagens sejam obcecados por vingança (como Madara) não o fazem apenas porque são mentalmente instáveis – eles são mentalmente instáveis porque são incapazes de deixar para trás seus traumas e desavenças, junto com incontáveis outras informações de outrora, agora inúteis.

Suponhamos que Madara Uchiha, fundador do clã moderno dos Uchiha tenha passado por uma centena de batalhas com seu Sharingan ativo; para o resto de sua vida, ele vai ter memória total e absoluta de tudo que enxergou com seus olhos – táticas, conversas, planos, inimigos e tudo mais. Para sempre. Assim como um acumulador compulsivo cerca-se de objetos ou bens mesmo que inúteis, são incapazes de se livrar, um usuário de Sharingan, de forma automática faz o mesmo com memórias, independente de sua vontade, apesar por usar o Sharingan.

Bros before hoes.
Já sabemos que é fisicamente impossível que um Uchiha esqueça algo visto com seu Sharingan, mas o que isso insinua? Que eventualmente as memórias acumuladas começam a ter um custo cumulativo no psicológico do personagem. Cada batalha encarada não é apenas mais um combate vencido ou perdido – é uma série de situações, como um filme em HD perfeito que eternamente permanecerá dentro de suas memórias.
Mesmo que a capacidade de memorização do ser humano seja espantosa (estimada como algo entre 3 a 10 petabytes, 4 a 10 milhões  de gigas, aproximadamente 300 anos de filmes ininterruptos em HD [2]), ela ainda não é ilimitada. Como um paralelo, imagine que filmes em HD consumam muita da memória de seu computador; agora pense num HD superior, capaz de enxergar nuances de alçada microscópica (como Sasuke fez na luta contra Deidara), movimentos velozes em seus detalhes mais precisos (como o bater das asas de um beija-flor, frame por frame) simultaneamente? Pensou? Esse é o Sharingan.
  
Novamente “entrando” na mente de Madara Uchiha, lembre que ele passou anos entrando em conflitos constantes contra o bando de Hashirama Senju (o primeiro Hokage); desde o primeiro conflito e a primeira desavença, Madara nunca foi capaz de esquecer os combates e discussões, e isso é possível de ser visto em diversos capítulos do mangá: quando enfrenta outros personagens, Madara sempre toma como ponto de comparação Hashirama, seja de forma direta ou indireta: para ele, o combate contra tal oponente é tão recente como algo que aconteceu ontem, enquanto que na realidade, mais de 60 anos se passaram.

Com o grande poder, vem a grande insanidade.
Isso demonstra que um usuário de Sharingan com idade avançada é literalmente um fantasma de outra era, incapaz de se adaptar por sua memória perfeita oriunda de sua vantagem em relação aos outros. Perceba que a memória eidética proporcionada pelo Sharingan não se limita apenas a acontecimentos visuais; sensações físicas e auditivas são memorizadas de forma idêntica. Como prova, temos a técnica Izanami (usada por Itachi), que utiliza as sensações físicas do próprio usuário, assim como as do alvo para prendê-lo num loop de ilusões.

I can has sharingan
Agora, sabemos as vantagens e com elas, temos uma série de questionamentos, alguns óbvios, outros não. O Sharingan não apenas oferece formas diferentes de utilizar técnicas, mas literalmente, uma forma diferente de enxergar o mundo. Um usuário de Sharingan provavelmente torna-se "viciado" ou mesmo dependente dessa visão além do comum; como complicação extra, sabe-se que a utilização das técnicas mais avançadas, invariavelmente faz com que o portador desses olhos especiais fique cego, que é um evento bastante trágico para a carreira de um ninja cujas habilidades dependem de sua percepção acurada e poderes visuais. Isso talvez explique a necessidade de um usuário de Sharingan de recuperar essa visão plena, incluindo mesmo a remoção e subsequente reimplante do olho de um irmão: eles precisam recuperar essa visão, não importa como.

Finalizando, apesar de sua desvantagem em grande consumo de energia, os únicos personagens que tem uma chance de serem psicologicamente saudáveis usando os poderes dos Uchihas acabam sendo Danzo Shimura e Hatake Kakashi, que numa dose extra de ironia poética não são membros do clã Uchiha e sim pessoas normais com olhos implantados. Com o auxílio de uma venda ou um tapa-olho, podem usar seus olhos normais e com isso lidar com situações que não exijam tais habilidades. Pena que usuários do Sharingan eterno como não tenham essa sorte.

TL;DR: Sharingan faz você ficar louco por excesso de memórias perfeitas